Alguns temas que você verá neste artigo:
- Empresas como a Shell abandonaram seu programa de pontos
- Programas de milhagens sofreram um grande impacto com a pandemia
- Cashback, descontos e outras vantagens imediatas ganharam destaque
- Seria o fim do programa de pontos ou devemos repensar o relacionamento com o cliente?
Entra ano, sai ano, e um tema recorrente surge com ares de novidade e profecia: o fim dos pontos nos programas de fidelidade. E, claro, com um 2020 extremamente difícil, com consequências que devem se arrastar por boa parte de 2021, não seria diferente. Mas dessa vez, setores que sempre se apoiaram fortemente no uso de programas de pontos para fidelizar o consumidor foram atingidos de forma inédita, como as companhias aéreas. Outras, como a Shell, já tinham migrado seu sistema de pontos para formas de recompensas mais imediatas. Seria o fim do programa de pontos?
A pressão para uma decisão como essa pode ser interna: uma companhia considerar que o programa de pontos não mais promove relacionamento de forma satisfatória, não engajando (o cliente quer vantagens mais imediatas), ou não possui viabilidade financeira; e também externa: no ano passado, no Brasil, por exemplo, dentro das discussões sobre um novo imposto em transações financeiras, houve propostas de taxação de pontos e milhagem, e, no Reino Unido, o Comitê de Mudanças Climáticas recomendou que os programas de milhas fossem extintos a fim de reduzir as emissões de carbono causadas pela aviação. Seriam razões fortes para repensar o sistema.
É o fim dos pontos… Mas, afinal, o que são?
O sistema de pontos é uma das formas mais simples e reconhecidas para gerar recompensas em um programa de fidelidade. Suas características gamificadas incentivam o retorno do consumidor pelo acúmulo de milhas, estrelas, não importa o nome, que pode ser acompanhado via site ou aplicativo e, posteriormente, trocado por produtos, descontos, vantagens etc. A pesquisa Panorama da Participação em Programas de Fidelidade no Brasil, lançada pelo TSI em 2020, mostra ‘somar pontos’ entre as dez características que mais causam sensações positivas, com 36,6% das preferências – à frente até do ‘cashback’, com 35,9%.
Então, por que razão uma gigante como a Shell abandonaria o sistema de pontos, como fez com seu programa Shell Go + para postos de combustíveis e lojas de conveniência, optando por um sistema milestone (benefícios a cada marco atingido pelo usuário) e recompensas instantâneas, como descontos? Parte da resposta está em outra pesquisa, esta da Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização (ABEMF), em que 40% dos usuários frequentes de programas afirmaram que é ‘difícil’ – e outros 15% consideraram ‘muito difícil’ – conseguir pontos suficientes para resgatar uma boa recompensa. Ou seja, o erro na dosagem tempo/quantidade no acúmulo de pontos mata o prazer da gamificação.
Queremos tudo e queremos agora
Nesse caso, não é preciso entender de psicologia pra saber que amamos recompensas instantâneas, aplacando nosso imediatismo. Esse traço ancestral é o que nos manteve vivos desde a pré-história – fome, sede, frio eram problemas a serem resolvidos a cada dia, não havia possibilidade de acúmulo ou recompensa futura, era caçar ou caçar. Quando nos assentamos e dominamos a agricultura, o valor do plantar hoje e colher no futuro passou a fazer sentido. A tecnologia e os tempos acelerados em que vivemos voltaram a impulsionar nosso traço imediatista. Como disse Fred Mercury: “I want it all and I want it now”.
Um erro comum é achar que só o ponto fideliza. Sem relacionamento com o cliente não há fidelização. É preciso conhecê-lo, saber seus anseios e entender seu contexto. É o que a maioria das companhias aéreas fez no último ano. Segundo a Organização Internacional de Aviação Civil, em 2020, houve redução de 1,5 bilhão de passageiros, com perdas de mais de US$ 314 bilhões. No Brasil, o que as aéreas fizeram? Prolongaram o vencimento de milhas, não rebaixaram categorias e facilitaram o resgate. De acordo com a ABEMF, no segundo trimestre de 2020, 100% das milhas resgatadas foram para produtos do varejo – com recuperação no terceiro trimestre, quando 53,7% dos resgates foram para passagens aéreas, mas valor ainda longe dos 80% pré-pandemia).
Relacionamento e o equilíbrio agora x futuro
Como eu disse, cada empresa pode chegar à conclusão de que o programa de pontos não mais funciona, e isso faz parte do jogo. Mas, achar, de saída, que o ponto é o problema é atacar o sintoma e não a causa, que é a falha no relacionamento com o cliente. É, basicamente, o que diz a teoria do human centered design, do professor de Ciência Cognitiva da Universidade da Califórnia, Don Norman. Se o projeto não pensou no uso para todos os humanos (de quem provê o serviço a quem o utiliza), ele terá falhas. Se a experiência é frustrante e não gera relacionamento e satisfação ao cliente, ela falhou.
Como sempre digo, no loyalty nenhuma ferramenta deve ser descartada. Cada uma delas – ou um pacote – irá servir para algum público em alguma situação. Deve-se pensar em demografia, perfis socioeconômicos, setores em que se inserem as marcas, suas contingências e a estratégia de negócios da companhia. Descartar os pontos sem uma avaliação de anseios e expectativas de clientes não é algo inteligente. É preciso encontrar o equilíbrio entre o hoje e o amanhã (sabendo que nada é imutável), e conhecer o que é relevante para seu cliente: o agora (caçar) ou o futuro (plantar e colher). Esse é o ponto.