Exclusivo: presidente da ABEMF avalia as lições de 2020 e 2021 (1ª parte)

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No final de novembro, João Pedro Paro Neto, presidente da ABEMF (Associação Brasileira das Empresas do Mercado de Fidelização), conversou com a equipe do TSI em uma entrevista exclusiva, e muito rica, que dividimos em duas partes. Esta primeira, com as lições tiradas do período da pandemia, e a segunda, sobre as expectativas para 2022 e o futuro.

Ouça este artigo na íntegra:

O presidente da ABEMF

João Pedro Paro Neto é presidente da Mastercard Brasil e Cone Sul desde 2013. Engenheiro mecânico pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), tem especialização em Advanced Executive pela Kellogg School of Management (Northwestern University). Ele assumiu a ABEMF em março de 2020, quando a pandemia dava os primeiros sinais no país.

A resposta à pandemia, 2020 na retranca e 2021 de movimentação

Nesta primeira parte da entrevista, João Pedro Paro Neto relembra como foi este período, a resposta do setor aos desafios e suas lições, como a digitalização acelerada, o crescimento das recompensas instantâneas, a relevância da experiência do consumidor e afirma: “Eu tenho de dar um jeito de ajudar o cliente a ganhar mais. É nosso grande desafio”.

Você assumiu a presidência da ABEMF no início de 2020, ou seja, pegou o começo da pandemia. Que lições o setor tirou desse período?

João Pedro Paro Neto: Algumas coisas foram muito importantes. A primeira delas foi que nós tínhamos uma vontade e um trabalho que vinha acontecendo de oferecer opções de troca. Vou trocar só por milha, só pela televisão ou ter só um lugar como opção de troca? A gente conseguiu mostrar para o consumidor que há milhares de opções. Desde cashback até bens de valores muito grandes. Trocas por pontos, parcelas de seguros, descontos na anuidade do cartão… Essa foi a primeira grande evolução.

A segunda foi pelo lado da digitalização. Nós tínhamos uma experiência ao consumidor muito ruim, muitos dos sistemas de pontuação onde você tinha de pegar papel, pegar autorização, não era friendly. A pandemia nos fez acelerar tudo isso, porque todo mundo virou digital e aí a questão era “ou a gente vira [digital] ou morre”.

E a terceira grande evolução foi no aspecto da segurança, fraudes etc. A gente trabalhou muito forte esse assunto porque tudo passou a ser online, os aplicativos são mais friendly e com muito mais segurança do que no passado.

E mais um item que eu acho que foi importante pra nós é que o setor conquistou [o consumidor]. “Pô, esse negócio é bom! Vamos usar isso aqui”. Apesar da pandemia, foi uma conquista. Eu lembro, no segundo trimestre do ano passado, que nós tivemos zero troca com companhias aéreas. Zero! E o que nós fizemos? Prorrogamos os pontos e as pessoas perceberam que podiam usar em outras coisas.

Antes da pandemia, [os resgates em] companhias aéreas eram mais ou menos 85% do nosso negócio. Hoje, estão em 55%. E, agora, estão trocando normal por [milhas de] companhias aéreas. Ou seja, as pessoas se acostumaram com outras formas de resgate. Isso foi uma mudança muito importante por conta da pandemia.

Pra mim, o consumidor passou a entender mais do nosso negócio e está exigindo mais de nós. Mais segurança, mais facilidade, simplicidade, maior oferta de trocas. Esse foi o grande aprendizado do período pra nós.

Você acha que ter agido prorrogando pontos, dando opções de troca, não deixar o participante perder benefícios mostrou seriedade e conquistou a confiança do cliente?

Sim. Na época que tomamos essa decisão, como indústria, foi uma unanimidade. “Temos de fazer algo porque será muito ruim pra gente se não o fizermos”. Nós aprendemos a aderir a programas de fidelidade pensando “vou guardar milhas pra viajar no fim do ano nas minhas férias”. A maioria das pessoas fazia isso, era um planejamento. Então, fomos pró-ativos e rápidos, não esperamos reclamações, confusões. E deu certo.

O consumidor percebeu e foi um dos elementos que nos ajudaram a estar no patamar que estamos [o País conta hoje com mais de 170 milhões de membros de programas de fidelidade]. Conquistamos o consumidor e conseguimos trazer quantidade de ofertas e uma amplitude maiores, e isso foi muito positivo. Também importante foi que nós fizemos com que as pessoas trocassem alguma coisa por menos pontos. Antes era quase inacessível, precisava de 1.000 pontos… “pôxa, vou juntar 1.000 pontos nunca! Nem vou entrar nesse negócio”. Hoje, não. Conseguimos fazer um pacote que você troca por alguma coisa.

Muito se falou que a digitalização avançou anos em alguns meses. Como foi no setor de fidelização?

A inteligência artificial foi acelerada e isso ajudou. Porque a gente tem de conhecer o cliente melhor e os programas de relacionamento têm essa função. Nada mais bacana que eu fazer uma oferta pra você na hora em que você precisa.

Não adianta eu ficar te oferecendo uma televisão se você não quer uma televisão. Todo dia uma mensagem? E, de repente, você quer comprar um vinho. Então, a digitalização nos ajudou a estar onde estamos hoje. Subiu o número de clientes por conta disso, estamos crescendo 20%, 30%. As pessoas estão vendo mais valor. Os programas estão trazendo mais benefícios para os consumidores, que ficam felizes. Isso é um ganha-ganha muito forte. E as empresas criaram grandes ecossistemas de relacionamento, o que é fundamental, e que não tem como fazer isso sem um programa de relacionamento.

Não adianta nada eu ter um negócio super bacana, cheio de ofertas, mas eu não consigo conversar com meu cliente, uma coisa passiva. Nisso a gente evoluiu bastante e ganhamos anos em alguns meses. E a tecnologia, hoje, ficou de graça, entre aspas. Você tem nuvem, você tem outros mecanismos, aquilo que era uma dificuldade muito grande simplificou-se muito.

E como o loyalty entra na experiência do cliente, seja fisicamente, seja no online, na entrega, como ele pode auxiliar não só no share of wallet, mas no share of heart do consumidor?

Quando eu falo na inteligência artificial é por conta disso. A gente gosta daquilo que a gente tem paixão. Nós, como responsáveis pelo programa ou fazemos o cara ter paixão pelo nosso ou vamos morrer. E a paixão passa pelo conjunto, não só saber entendê-lo, saber ofertar, pra poder mantê-lo. Ele vai ficar um período, se você o encantou, ele gosta, mas depois se não acontecer nada, ele vai embora. Então, para entender o cliente, hoje, você tem máquina pra fazer um a um. E por isso falei dos pacotes, dos parceiros, porque dão uma amplitude maior para que se encontre a oferta exata para você com meus parceiros. Você não precisa sair daqui pra achar a oferta. Eu conheço você. A gente brinca que quer conhecer o SKU [Stock Keeping Unit, código que identifica e rastreia um produto em estoque] pra poder fazer uma oferta precisa [para o cliente]. É uma construção de banco de dados, essas coisas pra mim valem muito.

Se eu consigo entender o seu desenho, o seu movimento, eu sou mais assertivo e aí você vai gostar mais de mim. Porque a dispersão é ineficiência e o cliente vai embora. Eu quero ser muito preciso no que eu faço, porque quanto mais informação tiver melhor faço isso.

Eu brinco muito com o pessoal do Abastece Aí: olha, na hora que o fulano estiver passando em frente ao posto, vocês mandam “seu carro está com menos de meio tanque e nós temos uma oferta pra você aqui, entre e abasteça agora”. Olha o gol! Bem na hora que você passou em frente ao posto. “Entra aqui e você ganha um pão de queijo que eu sei que você adora”. Dá pra fazer isso hoje.

Dá pra fazer isso sem ser invasivo, dentro da LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados)?

Sim, com tudo. Por essa razão a informação é relevante. Na construção do banco de dados fazer o clean-up hoje é fundamental. Por isso eu falo do open bank. Ele vai te dar um monte de informação, mas e daí? Aí é que entra a ciência, a inteligência artificial, o jogo. A gente vai ter de saber traduzir isso, saber brincar com isso. É por isso que disse que não estamos atrasados nem adiantados. A inteligência artificial é: quanto mais você põe o robô pra brincar mais ele aprende. Em fraudes na internet o Brasil era um dos piores do mundo. Nós mudamos, fizemos melhorias, novas tecnologias, reduzimos um terço.

Hoje, estamos no primeiro quartil dos mais importantes do mundo [em cibersegurança]. E eu tenho certeza de que com o robozinho trabalhando aqui mais uns meses nós vamos ser os primeiros. Mas a gente está em uma fase inicial ainda. Se a gente disser que tem alguma expertise em dados a gente está sendo, no mínimo, leviano. Todo mundo fala que dado é uma mina, essa conversa é muito legal, eu acredito também, mas dá trabalho, não é em uma semana que você terá a resposta pra tudo, não tem solução mágica. São anos de investimento. Mas a coisa boa nisso é que hoje você tem máquina e capacidade disponível.

A gente viu nesse período uma explosão das recompensas instantâneas (cashback, bounceback, descontos etc). Você acha que elas vieram pra ficar?

Eu não acredito, no mundo do varejo, digamos, de algo que venha pra acabar com todo o resto e ficar sozinho. Conceitualmente, eu sou da tese de que coisas são acrescentadas e segmentadas. Então, foi lançado o cashback hoje, pra nossa geração ele será super importante, mas daqui a uns anos ele será menos relevante. O varejo ele sempre acrescenta, ele sempre terá mais coisas e não menos coisas. A história da multicanalidade etc, é um assunto que o varejo fala há quantos anos? A pandemia acelerou isso.

Todo mundo está em multicanais hoje, vende pela internet, pelo telefone, pelo físico, manda entregar por delivery e por aí vai. E quanto aos programas de fidelidade é a mesma coisa. Fomos incorporando esses pacotes de benefícios ao longo da jornada para atender aos diferentes públicos dos parceiros. Então, eu não acredito no cashback como sendo uma solução única, mas acredito que ele tem o seu espaço, sim. Mas, como futuro, se pararmos pra pensar, eu acho que ele não é a solução para você ganhar o jogo.

Para você ganhar o jogo com o consumidor, na minha opinião, vale a oferta completa. Se você chegar aqui e me der um super desconto eu vou olhar, vou agradecer, vou ficar feliz, mas dependendo da oferta completa que eu receber do outro lado, eu vou pra lá e não fico com você. Essa é a tendência, o consumidor cada vez mais exigindo uma coisa mais ampla – prazo de entrega, qualidade do que estão me entregando, se vem embrulhado bonitinho ou feio, se vão acompanhar o pós-venda, se vão me dar um seguro… milhares de coisas. Eu não acho que o cashback seja uma estratégia. Algumas empresas lançaram o cashback pra formar sua base e hoje acrescentaram coisas à sua base e não ficaram só nisso. É importante porque mostra que uma única bala não vai resolver o problema.

Acredito numa amplitude de ofertas para alcançar o consumidor – por isso você tem de conhecê-lo, por isso um programa de relacionamento. Saber quem é quem aqui na minha base. Pra ter certeza na hora de chegar em cada um.

E tem a questão da viabilidade financeira, afinal o cashback é uma renúncia de receita.

A parceria entre várias [companhias] foi pra resolver esse problema. Exatamente por isso os pacotes são de várias delas. Todo mundo põe um pouco e todo mundo ganha. Se você sozinho assume todo o custo você não aguenta. Se você parar pra pensar, hoje, você entra num programa de parcerias, às vezes, você paga pra entrar, mas você começa a gerar outros tipos de fluxos. Hoje isso está muito mais difundido. No fim do dia, o retornar benefícios é dinheiro. Nada é de graça. Você está retornando vantagens em benefício de outras coisas. Por exemplo: quero desenvolver minha base em Cuiabá, vou gastar dinheiro lá. Consegui? Vou gastar meu dinheiro em Vitória. Então, eu acho que essas coisas [alavancas como o cashback] serão usadas de forma mais estratégica. E o pacote de relacionamento, que é mais amplo, ele faz parte de um conjunto de ofertas de diferentes empresas.

2020 foi um ano de “loyalty de guerra”, menos resgates de indulgência e mais utilitarismo, já o 2º trimestre deste ano pareceu apontar para uma retomada, com 55,9% de regastes em passagens aéreas. Dá pra fazer uma distinção entre 2020 e 2021, apesar da pandemia continuar?

Eu acredito que sim. Porque 2020 era todo mundo se defendendo de alguma maneira. Hoje, não. Já estamos nos movimentando. As pessoas passaram a acreditar mais, sair mais, então, a atividade está voltando a um ciclo mais próximo da realidade anterior. E 2020 era tudo não: isso não pode, aquilo não pode, era um outro momento por conta das incertezas gigantescas. Então, dá pra separar a pandemia em dois tempos, um de retranca e outro de movimento.

2020 e 2021 vão ser anos que, estatisticamente falando, vão desaparecer. Porque são um buraco que não faz sentido. Daqui a uns anos você vai olhar a curva e a tendência de 2019 vai voltar no fim de 2022. A gente vai estar onde deveríamos se não houvesse a pandemia? Provavelmente, não, mas numa direção muito parecida. Talvez mais uns dois anos pra ficarmos inclinados como estávamos.

Sean Claessen, chief strategy officer da Bond Brand Loyalty disse, em 2020, que sob uma “semiótica da crise”, vimos muitos sinais de proibido, muitas restrições, e que nos recuperar dependerá de sanar uma crise de confiança dos consumidores.

Pois é, eu concordo. Essa crise judiou de muita gente e nós já vínhamos de uma jornada ruim por um par de anos. Mas eu acho que a gente tende a voltar, acredito nisso também. É uma questão do moral, isso influencia. É como o empresário, se há um ambiente mais otimista, você investe. No fim do dia, nós todos somos assim. O consumidor está exatamente na mesma jornada. Mas o Brasil e o brasileiro são resilientes.

Por isso os programas de relacionamento têm de ser otimistas por natureza. Por que eles existem? Eles existem para gerar benefícios para seus clientes. Em uma crise, eu preciso por mais benefícios ainda do que sem crise, pois isso me torna mais eficiente. Eu tenho de dar um jeito de ajudar o cliente a ganhar mais. É nosso grande desafio.

Leia aqui a segunda parte da entrevista – Exclusivo: presidente da ABEMF fala de 2022 e novas tendências